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Fama cultivada safra a safra






Famosa pelos rótulos desde tempos remotos, Bordeaux nunca deixou de ser o centro das atenções para quem busca estudar ou apenas conhecer a fórmula de se fazer bons vinhos. Diz a história que foram as legiões do Império Romano que levaram a viticultura para a França. Na segunda metade do século XVII, a região despontou para o sucesso, com vinícolas criadas por ambiciosos produtores que tinham como foco principal o mercado da Inglaterra. Os franceses souberam explorar muito bem o próprio solo, saltando à frente de países como a Itália que, naquela época, produziam vinhos apenas para consumo familiar. Amantes de novidades, eles absorviam rapidamente as inovações tecnológicas.

Aprenderam desde cedo a explorar de maneira correta suas terras e a valorizar seu produto. Descobriram, por meio de estudos, os melhores métodos de plantar vinhas e obter sucesso após a colheita. Como resultado, obtiveram uma seleção de vinhos aprovada pelos consumidores. Mais tarde, escolas especializadas em viticultura surgiram – e Bordeaux ganhou fama ao redor do planeta.

A cidade mais famosa no mundo vinícola, cortada pelos rios Gironde, Garonne e Dordogne, encanta pelos belos edifícios e paisagens. Revela elegância, arte e cultura. Aqui estão mais de 20 sub-regiões, conhecidas pela sigla AOC (Appellation de Origine Controlée), entre elas as mais conhecidas são Pomerol, Médoc, Graves e a famosa Saint-Emilion. Passar por essa cidade medieval, tombada pela Unesco, e não provar seus vinhos é inaceitável. E, nem só de seus famosos Châteaux, como Lafite, Margaux, Latour, Haut-Brion, Mouton-Rothschild, Cheval Blanc e Petrus, vive a região. Pequenos produtores, ainda não tão famosos, fazem bons vinhos e, o melhor, que cabem no seu bolso.

Na Union de Producteurs de Saint-Emilion, por exemplo, é possível adquirir algumas preciosidades. No local, o visitante pode conhecer o processo de fabricação da bebida e ainda degustar o vinho que quiser. Nesse tempo, vale a pena conhecer a seleta produção de Saint-Emilion, como o Galius Saint-Emilion Grand Cru, vinho que provém da seleção de seus melhores terroirs. Contém 75% de uva Merlot, 20% de Cabernet Franc e 5% de Cabernet Sauvignon. Um tinto muito rico e concentrado, com atraentes taninos.

Outro que faz bonito é o Château Grangey, um Saint-Emilion Grand Cru (80% Merlot e 20% Cabernet Sauvignon). Tem bouquet agradável, dentro de uma estrutura de corpo sólido. É um vinho que já vem com a promessa de um bom envelhecimento em cave. Outro tinto interessante é o Château Haute-Nauve, também Grand Cru, uma bebida de bela cor, com um bouquet de finesse rara.

Em Graves, uma visita ao Château Haut-Brion é imperdível. Degustar seus vinhos da safra de 2003, um sonho. Se para os tintos essa foi uma safra diferente, onde a elegância deu lugar à força, para os brancos foi dessas colheitas que entraram para a história. O frescor da uva Sauvignon Blanc na boca transmite a sensação notável de mel com notas de amêndoas. Já a colheita de 2004 está se mostrando excepcional. O ano foi mais frio e úmido; a safra, mais generosa em quantidade. O inverno foi rigoroso e seco, com pouca chuva entre janeiro e junho. Junho também foi bem quente, possibilitando ótima floração. O resultado é a volta da elegância para os tintos e a continuação da qualidade dos brancos.

Suor e milagre

Não só no Novo Testamento o vinho alcançou status de milagre. O Château Cheval Blanc, em Saint-Emilion, entrou definitivamente na rota dos grandes vinhos por um desses acasos difíceis de explicar. Sua fama remonta a 1947, ano de temperaturas elevadas e clima seco – considerado difícil para imaginar uma produção de bons vinhos. Mas, por uma alquimia miraculosa, dessas que acontecem apenas uma vez na vida, o que se produziu com essa safra surpreendeu os mais importantes enólogos do mundo.

Kees Van Leeuwen, atual consultor de enologia da vinícola, explica que a produção de um vinho como o de 1947 é praticamente impossível de se repetir. “Aquele ano foi excepcional, mas muito atípico, com uma forte degradação alcoólica e um pouco de açúcar residual, seguindo uma pausa de fermentação, e acidez volátil bastante elevada”, diz Leeuwen. “É um vinho milagroso, não conseguimos mais produzir outro como aquele, devido à presença dos açúcares residuais.”

Em relatos registrados pela Cheval Blanc em 1947, consta que a fermentação do vinho era difícil, a bebida não estava perfeitamente seca, a acidez volátil era bastante elevada, o amplificador aromático e o suporte de estrutura não funcionavam bem. Era como assistir a um terrível acidente da natureza. Mas o temido desastre transformou-se no que chamamos de “néctar”, com poderosos aromas de frutas secas, especiarias, e um pouco de pimenta, devido a seu teor alcoólico.

Um vinho que desafiou a natureza e que quem o degusta, não o esquece. O Château Cheval Blanc 1947 em garrafa magnum é considerado por muitos “o melhor vinho da história” e, até hoje, é vendido por valores exorbitantes, a milionários colecionadores ou negociantes. É um rótulo que guarda seu terroir na memória. Detalhe: nessa época, a vinícola ainda não tinha propriamente um enólogo, mas um mestre responsável pela vinificação, Gaston Vayssière.

Kees Vans Leeuwen, que é também professor na Universidade de Bordeaux, explica com muita simplicidade a produção dos vinhos do lugar, seu solo e suas variedades. Quando questionado sobre a queda no consumo de vinhos na França, Leeuwen faz questão de ressaltar que esse comportamento tem suas razões. “Estamos vivendo uma mudança no modo de vida: os franceses que consumiam muito vinho agora passam menos tempo à mesa”, diz. “Temos também o problema do controle da taxa de álcool ao volante, o que limita a venda de vinhos nos restaurantes.”

O Cheval Blanc não utiliza herbicidas em seus vinhedos, o que interfere positivamente no sabor final da bebida. Sua variedade mais importante é a uva Cabernet Franc, seguida por uma parcela pequena de Cabernet Sauvignon. Em nossa degustação, o Cheval safra 2000 encheu a boca e os olhos. Um rouge intenso, bastante aromático, ligeiramente picante, mineral, apresentou bom corpo e final muito marcante. Outras safras que merecem destaque na história da Cheval Blanc são: 1921, 1949, 1950, 1961, 1964, 1971, 1975, 1982, 1990, 1998, 2000 e 2005. Delas saíram rótulos excelentes e que mantêm o nome de Bordeaux inscrito como epicentro do mapa mundial do vinho. Onde deve continuar por muito mais tempo.

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